quarta-feira, abril 19

Se por acaso alguem vier aqui, noa vai ficar impune! Toma lá! saboreia

O RIO
(excerto do livre de antonio tabucchi: Está a fazer-se cada vez mais tarde)

Sei que lidas com o passado: é a tua profissão. Mas aqui a história é ;wra, acredita. O passado é mais fácil de ler: voltamo-nos para trás e, podendo, dá-se uma olhadela. Além disso, de uma forma ou de outra, ele fica sempre agarrado algures, nem que seja em farrapos. Por vezes basta apenas o olfacto e as papilas gustativas, é notório: sabemo-lo por certoss romances, aliás magníficos. Ou então alguma recordação, uma qualquer: um objecto visto na infância, um botão encontrado numa ga­veta, que sei eu, uma pessoa que sendo outra te recorda outra ainda, um velho bilhete de eléctrico. E de repente lá vais tu, precisamente naquele eléctrico desengonçado que ia da Porta Ticinese ao Castello Sforzesco, dás contigo a atravessar o portão do palácio oitocentista, a escadaria tem um corrimão de ferro fundido decorado com uma cabeça de serpente, sobes dois lanços, a porta abre-se sem que toques sequer à campainha e tu não te surpreendes minimamente, até porque à entrada, sobre a cómoda rococó, por detrás do velho relógio neoclássico, reparas que o espelho antigo salpicado de manchas pardacentas tem uma mazela que o atravessa de canto a canto, e recordo que nesse dia me disseste: uma pessoa com uma doença como a dele não pode desafiar assim o destino, é como atrair a desgraça. E nessa altura percebes que a porta se abriu sozinha simplesmente porque ele, que queria desafiar o destino, tramou-se como se tramam todos os que querem desafiar o destino, sabe-se lá onde o enterraram, e só o espelho ferido ali continua, como nesse dia em que percebeste claramente aquilo que estava para acontecer.
Ou então pegas num álbum de fotografias, um álbum qualquer de uma pessoa qualquer, como eu, como tu, como toda a gente. E dás-te
conta de que a vida está ali nos diferentes segmentos que aqueles estúpidos rectângulos de papel encerram sem a deixarem sair dos seus acanha­dos limites. E no entanto a vida é coisa prenhe, impaciente, quer ir além daquele rectângulo, porque sabe que aquele menino vestido de branco, de mãos postas e com a fita da primeira comunhão no braço, amanhã (digo «amanhã» só para dizer um dia qualquer) há-de chorar às escon­didas com vergonha de si próprio: uma pequena torpeza? Pequena ou grande pouco importa, porque ela implica o remorso, e é dele que estamos a falar. Mas aquela fotografia feroz, mais severa do que uma vigilante, não deixa que a verdadeira verdade fuja dos seus escassos centímetros. A vida fica prisioneira da sua representação: serás o único a lembrar-se do dia seguinte.
Olha, foi assim, recordas-te?, e para recordar não poderia sequer citar uma poesia, tipo posta a enxugar a modesta roupa, que é sempre um elemento de melancolia, fala de vidas desconhecidas e humildes, e tão simples, daquela simplicidade que só os grandes poetas conseguem captar, ou pelo menos assim consta. Não: o que havia era uma paisagem ma­jestosa, daquela beleza demasiado bela quando é perfeita, como num fresco de Simone Martini, onde um cavalo ajaezado conduz um inefável cavaleiro para um inefável algures. E eu guiava o meu carro. Devagarinho, porém, procurando acompanhar as curvas que sulcam aquelas colinas, inclinando o corpo a cada uma delas, como quando se vai de bicicleta, porque gostaria de ser menino e de percorrer os encantos daquela paisa­gem com a bicicleta novinha em folha que os pais lhe deram no dia de anos. Era um lugarejo com quatro casas, não mais, de pedra tosca, sem uma demão de cal, sem vivalma, um palheiro dava sobre a estrada, dos tijolos vazados pendiam fios de palha que flutuavam na brisa, inúteis, também eles abandonados. Há coisas destas, que acontecem sem que
uma pessoa saiba porquê. Não havia razão nenhuma para me deter naquele sítio ermo, nem que fosse para tomar café, porque ali não havia _ente nada, excepto um caminho que, ao deixar o asfalto, a seguir o palheiro, era de terra batida e entrava pelos campos: até outro nada, lá ao fundo. E eu fui por aí.